Se nós não sabemos, por que é que eles têm de saber?
"Eu confesso: se tentasse entrar na universidade via vestibular, não passaria. Meu consolo é saber que eu não estaria sozinho. Teria muitos companheiros. Os reitores de nossas grandes universidades seriam os primeiros. A seguir, respeitáveis professores e pesquisadores. Talvez não passassem nem mesmo em suas próprias disciplinas. É duvidoso que um professor, que há anos se dedica a pesquisas de biologia molecular, ainda se lembre de como resolver problemas estatísticos de genética. Também os professores dos cursinhos: cada um passaria brilhantemente na disciplina de sua especialidade. Mas é duvidoso que um professor de português consiga resolver problemas de química ou física. Com eles, os professores que elaboram as questões que os alunos terão de responder. Para eles, vale o que foi dito sobre os professores dos cursinhos. Por fim, os diretores das empresas que preparam os vestibulares...
Essa hipótese desaforada poderia ser testada facilmente: bastaria que os personagens acima mencionados se submetessem aos vestibulares. Claro, seria proibido que se preparassem. O objetivo seria testar o que foi realmente aprendido. O que foi realmente aprendido é aquilo que sobreviveu à ação purificadora do esquecimento. O aprendizado é aquilo que fica depois que o esquecimento fez o seu trabalho...
Vestibulares: porta de entrada para a universidade? Seria bom se sua função se limitasse a isso. O sinistro está não no que é dito, mas no que permanece não dito: os vestibulares são uma dragão devorador de inteligências cuja sombra se alonga para trás, cobrindo adolescentes e crianças. Desde cedo pais e escolas sabem que a escola deve preparar para os vestibulares. Os vestibulares, assim, determinam os padrões de conhecimento e inteligência a serem cultivados. Mas não existe nada mais contrário à educação que os padrões de conhecimento e inteligência que os vestibulares estabelecem.
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Uma incoerência: o escritor Mário Prata teria zerado na prova de literatura do vestibular com a própria crônica que escreveu |
Minha filha queria ser arquiteta. Como não havia outro caminho, matriculou-se num cursinho. Eu a via sofrer tendo de memorizar coisas que não lhe faziam sentido. Fiquei com dó e, por solidariedade, resolvi fazer um sacrifício: passei a estudar com ela. Estudei meiose e mitose, as causas da Guerra dos Cem Anos, cruzamento de coelhos brancos com coelhos pretos...Estudei também, contra a vontade e sem interesse, a necrópsia da língua chamada análise sintática. Não sei para que serve. E dizia à minha filha, à guisa de consolo: 'Você tem de aprender essas coisas que você não quer aprender porque a burocracia oficial assim determinou. Mas não se aflija. Passados dois meses, quase tudo terá sido esquecido. Só sobrarão os conhecimentos que fazem sentido...'.
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Se a memória é seletiva e só aprende o que 'faz sentido' por que então as escolas fazem os alunos aprender por 'decoreba'? |
Por que nós, professores universitários, não passaríamos no vestibular? Por termos memória fraca: Não. Por termos memória inteligente. Burras não são as memórias que esquecem, mas as memórias que nada esquecem...A memória inteligente esquece o que não faz sentido. A memória viaja leve. Não leva bagagem desnecessária.
E aí eu pergunto: se nós, professores já dentro da universidade, não passaríamos nos exames vestibulares, por que e que os jovens que ainda estão fora têm de passar? É irracional. Especialmente em se considerando que irá acontecer com eles aquilo que aconteceu conosco: esquecerão...Haverá uma justificação pedagógica para esse absurdo: Ainda não encontrei."
Rubem Alves, Educação dos sentidos (Ed. Versus), páginas 71 a 74
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